A investigação sobre a vonatde de Crer - Santo Agostinho
Como consequência, é preciso investigar um pouco, se a vontade de Deus, que nos leva a crer, é também dom de Deus ou se atua por força da liberdade naturalmente inserida em nós. Pois, se dissermos que não é dom de Deus, é de se temer que pensemos ter encontrado alguma coisa contrariando o dizer do Apóstolo: O que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não tivesse recebido? (1Cor 4,7). E assim possamos responder-lhe: "Temos a vontade de crer, a qual não recebemos"; "temos de que nos gloriar, porque não a recebemos".
E se dissermos que mesmo a vontade de crer é dom de Deus, é de se temer os infiéis e os ímpios pretendam com razão desculpar-se por não terem crido, visto que Deus não lhes outorgou esta vontade. Pois, o que está escrito: É Deus quem opera em nós o querer e o operar, segundo a sua vontade (FL 2.13), já é um efeito da graça, que a fé implora para que possam ser boas as obras do homem, as quais são obras da fé mediante a caridade que é difundida no coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado.
Se cremos que podemos alcançar esta graça e cremos deveras por um ato da vontade, devemos investigar a origem deste querer em nós. Se nos vem pela natureza, porque não vem a todos? O mesmo Deus não é o criador de todos? Se procede de um dom de Deus, por que não favorece a todos, pois ele quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade?
Primeiramente, respondamos à primeira questão e vejamos se satisfaz o dizer que a liberdade atribuída por Deus à alma racional mediante a natureza é uma força intermediária que pode ser dirigida para a fé ou inclinar-se para a infidelidade. Assim sendo, nem esta vontade, que o leva a crer em Deus, pode-se dizer que o ser humano a tem como não recebida, pois, pelo chamado de Deus, esta vontade nasce da liberdade, da qual, usando bem ou mal, serão julgados com justiça. Quando usam malda liberdade, os infiéis agem certamente contra a vontade de Deus, não acreditando no seu Evangelho. Mas a não a conseguem vencer; pelo contrário, privam-se a si mesmos do grande e sumo Bem, tornam-se réus de rigorosos castigos sob o poder daquele cuja misericórdia desprezam em seu benefício.
Assim a vontade de Deus permanece sempre invicta. Seria vencida, se não soubesse o que fazer dos que a desprezam ou se eles de algum modo conseguissem evadir-se do que lhes preparou. Pois, o que significa, por exemplo, quando dizem "Quero que todos estes empregados trabalhem na vinha e, depois do trabalho, tomem sua refeição tranquilamente; e, se algum deles não quiser, vá trabalhar para sempre no moinho"? Todo aquele que desprezar a ordem parece que procede contra a vontade do patrão. Mas poderá vencê-la, se, desprezando-a, conseguir fugir do moinho, o que de forma alguma poderá acontecer quando se trata do poder de Deus.
Por isso está escrito: "Deus disse uma coisa", ou seja, sem possibilidade de mudança, embora se pudesse aplicar esta sentença ao Verbo Unigênito. Em seguida, acrescentando o que falou de modo irrevogável, diz: Estas duas ouvi: O poder é de Deus, e tua, ó Senhor, é a graça; porque retribuirás a cada um segundo suas obras (SL 62, 12). Portanto, é réu condenação sob seu poder aquele que despreza sua misericórdia quando chamado à fé. Mas a todo aquele que acreditar e a ele se confiar para ser absolvido dos pecados, curando-se de todos os vícios, inflamando por seu calor e iluminando por sua luz, contará com sua graça para boas obras. As boas obras o libertarão da corrupção da morte mesmo em seu corpo; será coroado, saciado de bens não temporais, mas eternos, além do que podemos pedir ou pensar (Ef 3, 20).
O salmo referiu-se a estes mesmos favores divinos observando a mesma ordem, ao dizer: Bendizei, ó minha alma, ao Senhor, e não esqueças nenhum dos seus benefícios. É ele quem perdoa todas as tuas culpas, e que sara todas as tuas enfermidades. É ele quem resgata da morte a tua vida, e que te coroa de misericórdiae de graça. É ele quem sacia de bens a tua vida (SL 103, 2- 5). E para que a deformidade do homem velho, ou seja, de nossa mortalidade, não se desesperasse de alcançar estes bens, continua o salmo: Renova-se, como a da águia, a tua juventude. Como se dissesse: "Isso que ouviste diz respeito ao homem novo e ao Novo Testamento". Considera comigo tudo isso um pouco, e te peço, e contempla com prazer esse louvor à misericórdia, isto é, à graça de Deus.
Diz o salmo: Bendizei, ó minha alma, ao Senhor e não esqueças nenhum dos seus benefícios. Não diz: "distribuições", mas "benefícios" (retributiones), pois o Senhor recompensa os males com benefícios. É ele quem perdoa todas as tuas culpas, ou seja, no sacramento do batismo. Que sara todas as tuas enfermidades, o que acontece na vida do homem fiel, quando a carne tem aspirações contrárias ao Espírito e o espírito contrárias à carne e não fazemos o que queremos (GL 5, 17); quando percebe outra lei em seus membros que peleja contra a lei da razão; quando o querer o bem está ao seu alcance, não, porém o praticá-lo (Rm 7, 23.18). Estas enfermidades do homem velho, se avançamos com intenção de preservar, são curadas com o crescimento dia a dia do homem novo pela fé que opera pela caridade. Que resgata da morte a tua vida: isso se realiza no juízo, quando o Rei justo sentar-se-á no trono para retribuir a cada um conforme as suas obras. Então, quem se gloriará de possuir um coração casto? Ou, quem se gloriará de estar purificado de todo pecado? (Pr 20, 8-9; Mt 16,27).
Foi preciso realçar a compaixão e a misericórdia do Senhor, falando daquele dia em que o cobrar as dívidas e o retribuir os merecimentos poderiam ser vistos como se não houvesse lugar à misericórdia, mas considerando as obras. Pois será separado para a direita aquele ao qual se dirá: Tive fome e me deste de comer (MT 25,35), mas o juízo será sem misericórdia para aquele que não praticar a misericórdia (Tg 2,13), porém: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mt 5,5).
Com efeito, quando os da esquerda forem para o fogo eterno, os justos serão convidados para a vida eterna (Mt 5,7), pois assim está escrito: A vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e aquele que enviastes Jesus Cristo (Jo 17,3). Com esta contemplação o desejo se saciará de bens espirituais. Esse conhecimento o saciará, nada mais haverá a desejar, a aspirar, a procurar. Abraza-se neste desejo de se saciar aquele que disse ao Cristo Senhor: Senhor mostra-nos Pai e isto nos basta! Foi-lhe respondido: Quem me viu, viu o Pai (Jo 14, 8- 9). Pois, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo. Mas se aquele que viu o Filho, viu também o Pai, sem dúvida, aquele que vê o Pai e o Filho, vê também Espírito Santo do Pai e do Filho.
Assim, não abolimos a
liberdade e nossa alma bendiz o Senhor, não nos esquecendo de todos os seus benefícios;
nem desconhecendo que a justiça de Deus pretende estabelecer a sua própria (Rm
10, 3). Mas crê naquele que justifica o ímpio, e vive da fé até chegar à
contemplação de Deus, ou seja, pela fé que age pela caridade. Esta caridade difunde-se
em nosso coração não pela força da vontade própria nem pela letra da lei, mas
pelo Espírito Santo, que nos foi dado.
A Graça (I), Santo Agostinho, p 86 a 90.